O natural inventado
A palavra espelho, deriva do latim speculu(m) e refere-se a uma superfície polida que reflete a luz. É nele que os objetos ganham um duplo virtual; que os indivíduos se reconhecem; que imagens são formadas; que a ilusão se cria. Alice não resistiu e atravessou o espelho, do lado de lá tudo era ‘quase’ igual, mas com várias estranhas diferenças, as palavras eram às avessas, a percepção, o tempo e a sequência das coisas ocorriam ao contrário. A fantasia de Alice é também a de muitos, daqueles que gostariam de entrar no outro lado e ver o avesso do mundo no seu reflexo. O desejo de compreender o mundo a partir de uma visão externa a própria, mas que é supostamente igual a sua parece ser equivalente `àquela oferecida pelo espelho; ver e ver-se.
A partir desse desejo, passei a investigar as similaridades entre o espelho e a fotografia e a estudar sobre a essência da imagem fotográfica utilizando o espelho como elemento metafórico e de comparação, de convergência‐divergência, de presença‐ausência das imagens. Ambos são na sua origem: objetos de reflexão; objetos de ‘reflexão da realidade’; produtores de imagens e, para tanto, dependentes dos raios luminosos (luz). São utensílios para ver-se e para ver, são aparelhos e mediadores; ambos contém em si similaridades sobre a questão da duplicidade e sobre realidade.
Neste ensaio trabalho essas questões e enceno imagens que, se sobrepõem ao mesmo tempo que se contrapõem, entre espelhos num espaço em movimento, nas águas de um rio na região de Morretes, na Serra do Mar. Nessas aparições elaboro outros duplos, transfiguro a natureza e questiono: as imagens que vemos estão na cena ou no reflexo do espelho?
Com a ajuda dos espelhos, busco deixar em evidência o processo de aparência do ser e da imagem que Clarice Lispector apresenta em seu texto “Espelhos”. Me aproprio do seu conceito sobre essa inter-relação e também de sua definição do espelho como o único material inventado que é natural.
Falar dessa naturalidade inventada é para mim falar da imagem fotográfica. Sinto que preciso confrontá-la, questionar suas possibilidades e invadir sua natureza evidenciando aquilo que nela já esquecemos de questionar. ‘O natural inventado’ surge dessa necessidade de ver apenas a imagem, de jogá-la dentro dela mesma, de ver o reflexo dentro do reflexo. Vêm da vontade de materializar suas ilusões que acontece quando insiro pedras sobre o rio e águas nos espelhos. Vêm no impulso de fragmentar o retângulo (fotográfico) em quatro, dois, um espelho, até se dissolver, voltar a ser água. E a luz refletida, os brilhos, esses permanecem para que não esqueçamos de sua superfície reflexiva, desse material que inventamos para ver-nos.