Irradiações de corpo ausente
A palavra “texto” vem do verbo latino “texo”, que quer dizer “tecer”. Um texto é um tecido formado por diversas partes conectadas e cujos sentidos se dão pela relação estabelecida entre os fragmentos. No trabalho de Guadalupe Fernandez Presas o texto das palavras e o texto das imagens estão em constante diálogo.
As obras irradiam de dois pontos principais: caixas de memórias fotográficas de família e um poema que emana da lida com a dor. Memórias fotográficas e poesia são ativadas em uma trama de construção de significados, onde encarar o mundo é transformar os retalhos em possibilidades. As palavras procuram sentido em caixas repletas de imagens deixadas por um corpo que já não está. Nelas, momentos da vida de um homem que procurou horizontes desconhecidos em meio ao mar, mas paradoxalmente por ele não navegou. Dessas imagens que misturam traços de memória e melancolia, Guadalupe tece tentativas de materializar a ausência. A linha vermelha perfura o papel duro e brilhoso à medida em que constitui novos corpos: colunas e constelações.
Um trecho do poema da artista que evoca: “plantar árvores na coluna vertebral quebrada” conecta-se diretamente com a série "Colunas". E é das imagens das vértebras de seu pai, que havia passado por um longo tratamento de saúde, que vem a ação de reconstruir a verticalidade do estar no mundo. Nesse processo o corpo ganha presença. E o olhar, que um dia foi projetado e criou aquelas imagens, mistura-se nos gestos da artista que costuram colagens a partir dos fragmentos de paisagens, mar, céu, flores, caminhos…
Na série “Constelações”, as vértebras se curvam em busca da forma perfeita não encontrada na natureza: o círculo. Ao curvarem-se, transformam-se em bússolas de navegação, objetos fundamentais para nos situarmos na imprecisão da imensidão. Essas bússolas também nos remetem aos diafragmas das câmeras, em um processo de fazer fotográfico sem que seja necessária a captação de novas imagens. Faz parte da mesma série a instalação presente na terceira sala intitulada “L1; L2; L3; L4; L5”, composta por círculos luminosos conectados por fios vermelhos. Aqui os astros encontram-se com a terra e são observados em sua concretude. As partes que os compõem podem ser analisadas através da incidência da luz: somos como poeiras de estrelas.
Pelo vídeo, a coluna ereta ganha movimento em contato com o mar, fazendo com que o ritmo das ondas reja o corpo pendular que se conforta sob a areia. O trabalho faz parte da série “Suturas”, na qual a ação de unir através da costura se destaca. Animar as conchas de ostras, feitas com o mesmo material dos nossos corpos, com a energia que vem do oceano é uma tentativa de trazer tempo presente a uma vida que já passou e de pararmos para um instante de contemplação.
A exposição “Irradiações de corpo ausente" abre caminhos e amplia nosso entendimento da imagem fotográfica a partir do convite para navegarmos pelo universo do gesto e da memória. A transmutação do tempo encontra-se com imagens até então deslocadas do presente, guardadas em caixas pouco acessadas. Elas se transformam quando animadas e suturadas, em um exercício de busca da cura que carrega a vida. É um convite para enfim nos alçarmos ao mar e por ele navegarmos.
Milena Costa
curadora